sábado, 25 de dezembro de 2010

2 de outubro

Ao longo do cais eu estava envolvida nos meus pensamentos, observando as pessoas passando sem notar. Hesitei muitas vezes em deslocar a rota, perder-me pelas ruas e sair da cidade. Mas voltei. E como um robô de apenas uma função, já estava parada na porta de casa. De novo.
Saí do onibus com raiva. Uma raiva que me lembrou um filme em que um homem puxa a Lua pra mais perto da varanda para seu amor. Não ligo pra isso. Não ligo pra nada. E quem fez aquilo com minha roseira? Minha porta de casa estava imunda. A terra sujou meu tenis que comprei pensando em você, pensando em furar seu pulmão. Sujei dentro de casa, joguei meus sapatos na cozinha e mordi a boca com tanta força que não senti meus lábios por dois minutos.
Tudo culpa do cigarro. Tabaco seco picado enrolado em mim, virei o papel que fumava. E eu que odiava tanto o cheiro disso , pago agora o preço. O preço de cinco maços por dia na rua de baixo.
Quando eu saía por aquela porta, eu fumava sem culpa. Não ligava se minha língua ia ficar com o mesmo gosto daquela noite, não fazia questão nenhuma de bala de hortelã. Não tinha hora pra ir embora. Fumava sem pressa, ficava sem fôlego. A menor oxigenação resultava muito cansaço. Eu sabia disso melhor do que ninguém e mesmo assim fumava. Achava isso maravilhosamente perigoso. Meu fluxo de sangue diminuía junto, mas eu nem sentia. Eu só sentia você.
Nicotina, xileno, tolueno, cetonas, amônia, benzeno, níquel, cianeto, polônio. Sei as definições até hoje. Chegava a fazer uma carta comparando tudo isso com minhas dores, mas a queimei com o mesmo fósforo que acendi o cigarro ao terminar de escrevê-la. Ninguém sabe, mas você continua sendo minha maior inspiração.
Eu era a Cruella de Vil dos seus filmes. Mas você não tem mais tempo pra televisão.
Só eu sei o que foi chegar em casa hoje e ter que estragar a única coisa que furaria o que tanto você faz questão de estragar com esse vício que me consome mais do que você mesmo. Eu nunca estive tão magrela, tão pálida, tão sem forças. E a única coisa que havia me deixado bonita hoje à beira do cais eu consegui estragar; e também amassar minha geladeira. E isso me lembra que nem posso mais inventar a desculpa de consertar alguma coisa aqui em casa. Eu ja deixei tudo atrás, não tenho ninguém.
Então eu pensei em sair do litoral. Voltar àquela cidade, nem pequena nem grande, e te achar naquele bairro simpático. Fiquei no quase e continuo nele. Será que você faz idéia que eu estou a um fio do infarto literal? Será que você ligaria? Será que você voltaria? Não tínhamos contrato, mas você poderia ter ficado. Meu drama virou palhaçada quando vi que os outros não sentiam mais sua falta. Só eu.
Sentei no sofá dividindo espaço com as sete almofadas que tinha ganhado da minha mãe. Fiquei abraçada com duas delas e joguei o resto no chão. Eu não ia chorar. Eu não tinha mais tempo pra isso. Essa droga era evitável, mas eu não consigo mais te largar. Fumar você me consumia tanto que eu já não sei mais o que fazer com o tempo que sobra.
Tentei mover minha carcaça cadavérica. Tropecei na “quarta-feira” e bati a cabeça na mesa de vidro do centro da sala. Aos poucos, o sangue escorrendo da testa fazia uma poça, junto com os montes de cinza do chão.
Engoli a seco uma saliva que ainda restava na boca seca. Lembrei a noite que me afoguei no banheiro com comprimidos inuteis que me deixaram tonta durante toda a madrugada. A fumaça embaçou minha vista. Fiquei no chão. Só não sabia ainda se era câncer ou cansaço.

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